O sofrimento em São Paulo

O tema do sofrimento na vida cristã, em geral, e na vida do apóstolo Paulo, em particular, é de grande relevância nos escritos paulinos. Desde o início de seu chamado, após a queda na estrada de Damasco, Paulo traz o selo do sofrimento como marca de seu ministério. O livro dos Atos dos Apóstolos nos informa que Ananias, ao ouvir do Senhor que fosse ao encontro de Saulo de Tarso para que, impondo-lhe as mãos, orasse a fim de que pudesse recobrar a visão, num primeiro momento, manteve-se reticente. Ananias tinha ouvido falar de Saulo e do mal que havia causado aos discípulos de Jesus. O Senhor, porém, insiste dizendo a Ananias: “Vai, porque este homem é um instrumento que escolhi para levar o meu nome às nações pagãs, aos reis e aos israelitas. Mostrar-lhe-ei o quanto ele deve sofrer pelo meu nome” (At 9, 15-16). Esse texto é fundamental para a compreensão do sofrimento apostólico de Paulo. Indica que o sofrimento de Paulo é inerente à sua vocação, parte de sua identidade missionária e reflete a vontade do Senhor Jesus Cristo.

paulo_2

Por que deveria o jovem Saulo, escolhido pelo Senhor, sofrer? Seria o ministério apostólico necessariamente vinculado ao sofrimento? De que sofrimento se trataria?

O verbo grego “paschô” (sofrer), constante do versículo 16, é usado nos evangelhos para se referir à paixão de Cristo, ápice de Sua aceitação da vontade salvífica do Pai. Aqui, indica a Saulo que, a partir desse momento, sua vida penetra numa nova dimensão soteriológica. O sofrimento, indicado aqui pela forma verbal “paschô”, não diz respeito simplesmente ao suportar passivamente hostilidades e perseguições. A forma verbal indica, pelo contrário, o sustentar, o levar adiante a obra de Cristo por meio do sofrimento: “Mostrar-lhe-ei o quanto ele deve sofrer pelo meu nome” (At 9, 16).

Paulo já não pertence a si mesmo (cf. 1Cor 6, 19). O mistério deste chamado a ser o último dos apóstolos, como ele mesmo diz em 1Cor 15, 8, coloca-o em consonância com o Mistério Pascal do Senhor. O campo semântico “paschô” (sofrer), “pascha” (Páscoa) iluminado em At 9, 9 pela menção à privação da vista sofrida por Saulo durante três dias, não deixa margem de dúvida. A existência de Paulo, a partir de agora, imersa no Mistério Pascal do Senhor é chamada a tornar-se, por causa de Cristo e de seu Evangelho, uma existência Pascal velada pelo paradoxo do próprio Mistério Pascal do Senhor, no qual na dor encontra-se a cura, no sofrimento, a libertação, na morte, a vida.

A dimensão pedagógica do sofrimento apostólico

Em 2Cor 12, 1-10, Paulo, ao ser privilegiado com visões celestes e para não cair no orgulho, recebeu um espinho na carne (vv. 6-7). Na história da interpretação desse versículo, desde os primeiros Padres exegetas, muitas soluções foram propostas. Mas parece mais plausível a interpretação que compreende o “espinho na carne”, com o explicativo “anjo de Satanás”, como identificado com as fraquezas, os insultos, os constrangimentos, as perseguições e as angústias, tudo isso vivido por amor a Cristo e seu Evangelho. Diante de tal espinho, Paulo suplicara ao Senhor que dele o afastasse por três vezes, mas o Senhor lhe responde que lhe basta Sua graça. Assim, Paulo entende que deve se comprazer em suas fraquezas, como relata o trecho, a fim de que sobre ele pouse o poder de Cristo. Ele sabe que, assumindo sua fraqueza, ele se torna forte.

O sofrimento, assim, exerce um papel pedagógico, ensinando Paulo a compreender que quanto mais ele depender do poder de Cristo, tanto mais seu ministério será eficaz. Tal eficácia nasce do fato de que o sofrimento apostólico torna-se pascal quando se torna participação na Paixão e Morte de Cristo. A pedagogia encontra-se no fato de que o sofrimento exerce a função positiva de prevenir o apóstolo de confiar somente em si mesmo ou em suas aptidões e dotes. Paulo entende, assim, o sofrimento como o meio pelo qual se torna claro que seu sucesso como apóstolo se deve, exclusivamente, a outro poder que não é o seu, mas o de Cristo. Ele é simplesmente um instrumento; a eficácia de seu ministério se realizará plenamente somente se ele viver como instrumento.

A dimensão mística do sofrimento de Paulo

O processo da plena maturidade do discípulo inicia-se quando toma a sua cruz de cada dia, renega-se a si mesmo e segue Jesus (cf. Mt 10, 38). Mas Paulo vai além: não se sente somente um seguidor, apesar de todas as renúncias que o tomar a cruz a cada dia pudesse exigir. Paulo se sente crucificado com o seu Senhor (cf. Gl 2, 19b). Quer identificar-se com Sua entrega. Ele se sente suspenso à Cruz, crucificado com Cristo, mesmo no momento em que pronuncia essas palavras. Ele foi crucificado e continua ainda sendo crucificado; sua vida se torna uma vida crucificada, em função dos sofrimentos apostólicos decorrentes da fidelidade à verdade do Evangelho.
Em seus ouvidos ressoam as palavras de Jesus: “Mostrar-lhe-ei o quanto ele deve sofrer pelo meu nome” (At 9, 16). Paulo chega à plena maturidade de sua vida espiritual: Ele já não vive, é Cristo que nele vive (cf. Gl 2, 20), pois sua vida se torna vida de completo abandono, pela fé, a Jesus que o amou e por ele Se entregou. Paulo reconhece não somente o pleno amor de Jesus que por ele Se entregou, ao morrer na Cruz, mas também o efeito soteriológico de tal entrega.

A vida plena em Cristo não é satisfação das próprias vontades, do próprio ego, mas da vontade do Pai, revelada em Cristo. Quanto mais o apóstolo se tornar escravo da vontade de Deus, mais livre será; quanto mais dependente de Cristo, mais eficaz se tornará seu ministério; quanto mais fraco, mais será forte, pois a fecundidade de seu ministério não pode provir senão da Graça da Cruz.

Paulo define toda a existência cristã, que é comunhão com o Filho de Deus. Paulo se considera, assim, morto para a Lei, morto para as glórias deste mundo, morto para as expectativas dos que o enquadram num ministério apostólico diferente daquele em cujo centro encontra-se a C ruz de Cristo. Os sofrimentos provados não possuem somente uma explicação humana, mas pela fé, representam uma participação nos sofrimentos de Cristo (cf. 2Cor 1, 5; Fl 3, 10; Cl 1, 24). Assim, tanto a morte quanto a vida para Paulo são dimensões da única Vida em Cristo. A tensão, o sofrimento, a provação, Paulo vive como efeito da morte e da vida ressurrreta de Cristo.
Em seus ouvidos e coração ecoam as palavras do Senhor: “Bem-aventurados sois quando, por minha causa, vos injuriarem, e vos perseguirem e, mentindo, disserem todo mal contra vós” (Mt 5, 11). Experimenta misticamente, antes mesmo de seu martírio, a fecundidade do “sangue derramado” (Mc 14, 24) e do “grão de trigo que morre” (Jo 12, 24) e se identifica plenamente com seu Senhor, que o amou e por ele Se entregou. Por isso, ele pode dizer com a plenitude do significado das palavras: “Com Cristo fui crucificado. Vivo, mas não sou mais eu, é Cristo que vive em mim.”

Extraído do artigo “O sofrimento apostólico de Paulo”, de Pe. Luís Henrique da Silva, Doutor em Ciência Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma, in “Coletânea – Revista de Filosofia e Teologia da Faculdade de São Bento do Rio de Janeiro”, n. 13, 2008, pp. 117-131.

VOCÊ SABIA?

… Que nova teologia da mortificação realça a sua importância na vida cristã? Baseado em dados bíblicos, Padre José Roberto Palau, reitor do Instituto de Teologia e Filosofia Santa Teresinha e vigário-geral da Diocese de São José dos Campos, SP, explica que o termo “mortificação” tem sua origem em Cl 3, 5. Logo no início desta perícope (versículo 5), o autor conjuga o verbo “mortificar”, no modo imperativo aoristo, em grego “necrósate”, que significa literalmente “mortificai-vos”, ou seja, “dai morte”, “fazei morrer”. Só que este verbo está inserido no contexto integral do trecho bíblico, que retoma o argumento principal da teologia paulina de Rm 6, 1-11, cujo tema é a morte do “homem velho”. Desse modo, o verbo mortificar, interpretado à luz desta catequese batismal, assume a significação de morte, não ao corpo, mas a uma existência pecaminosa. Portanto, literalmente, o termo mortificação significa morte ao pecado, ao “homem velho”. É um termo derivado da própria dinâmica batismal. Contudo, existe um detalhe de suma importância na dinâmica batismal: a graça santificante cria o “homem novo”, mas seu desenvolvimento não ocorre automaticamente, pois é imperativa a colaboração humana. Desse modo, como bem alerta São Paulo, existe o risco real da graça ser desperdiçada (cf. 2Cor 6, 1). O que significa a mortificação: você colaborar com a graça para que o “homem novo” cresça e o “homem velho” morra. Na realidade, a teologia da mortificação é a teologia do batismo. Daí se resgata o verdadeiro sentido de mortificação: não é morte ao corpo, como foi entendida por longo tempo na Igreja (dentro do esquema ascético inspirado no dualismo neoplatônico e no rigor do estoicismo), mas morte ao “homem velho”. A nossa vida é uma constante luta para que o “homem novo” cresça e o “homem velho” morra. A mortificação é o desenvolvimento da graça batismal. Com a graça batismal, se recebem as três virtudes teologais: fé, esperança e caridade. Diante disso, o “homem novo” cresce com o desenvolvimento das virtudes teologais. Assim, a mortificação continua a exigir penitência e sacrifício, mas numa visão que supera a mera penalização do corpo, naquele dualismo anterior.

Kátia Maria Bouez Azzi
Consagrada na Comunidade Católica Pantokrator

Compartilhe:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Faça a sua doação e ajude a manter a nossa comunidade ativa e próspera

Conteúdos Relacionados

Ao continuar a navegar ou clicar em "Aceitar todos os cookies", você concorda com o armazenamento de cookies próprios e de terceiros em seu dispositivo para aprimorar a navegação no site, analisar o uso do site e auxiliar em nossos esforços de marketing.
Políticas de Cookies
Configurações de Cookies
Aceitar todos Cookies
Ao continuar a navegar ou clicar em "Aceitar todos os cookies", você concorda com o armazenamento de cookies próprios e de terceiros em seu dispositivo para aprimorar a navegação no site, analisar o uso do site e auxiliar em nossos esforços de marketing.
Políticas de Cookies
Configurações de Cookies
Aceitar todos Cookies