O Carnaval

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Carnaval significa “festa da carne (alimento)” e era, em seus primórdios, uma festa religiosa.  Às vésperas da Quaresma, diante da perspectiva de passar quarenta dias em abstinência de carne (como acontecia antigamente), os cristãos fartavam-se de assados e frituras entre o domingo e a “terça-feira gorda”, também conhecida pelo nome francês Mardi Gras, último dia antes da Quaresma. Nos Estados Unidos, o termo mardi gras é sinônimo de Carnaval.
Todo indivíduo sente necessidade de alegria. Sem ela, a existência se torna insuportável. A própria saúde física se ressente. Diz a Sagrada Escritura, no livro do Eclesiastes (9, 15ss): “Por isso louvei a alegria, visto não haver nada de melhor para o homem (…) é isto que o acompanha no seu trabalho, durante os dias que Deus lhe outorgar debaixo do sol”. E o Senhor, no livro dos Provérbios (2,14-15), lembra que há limites, pois são reprovados os “que se alegram por terem feito o mal e se regozijam na perversidade do vício, cujos caminhos são tortuosos e se extraviam por vias oblíquas”.
Os festejos carnavalescos têm remota e obscura origem eclesiástica. Tanto assim que dependem de uma data móvel do calendário litúrgico. Antecedem sempre o início da Quaresma. Terminam com as Cinzas da quarta-feira. E a Igreja, em seu ritual de administrar as cinzas sobre os fiéis, recorda ao homem a fragilidade de sua condição: “Lembra-te, ó homem, que és pó e ao pó hás de tornar”. A Quarta-feira de Cinzas instiga-nos a refletir sobre esta experiência inelutável: a morte.
Quaresma é tempo de voltar para Deus, de reaquecer a fé e de mudança de vida e superação das atitudes patológicas. Muitos ainda hoje se abstêm de comer carne, mas esquecem-se da caridade fraterna, agindo de forma hipócrita e medíocre. Já lembrava São Leão Magno: “é inútil tirar ao corpo a comida, se não se tira da alma o pecado.” A intuição central da Quaresma é a mudança de atitudes e práticas favorecendo a solidariedade e a fraternidade.
Nesses dias ruidosos de Carnaval, devemos ter a coragem de avaliar o que ocorre em nosso país por tradição. Por vezes, assumem proporções de verdadeiras orgias coletivas, com crescente degradação dos padrões morais e agressão à dignidade humana.
O Carnaval, infelizmente, perdeu, aos poucos, seu sentido original de diversão simples do próprio povo. Vem a ser mais um espetáculo para turistas, e oportunidade aos menos escrupulosos de extravasar baixos instintos, esperando contar com certa cumplicidade do meio ambiente. Aumentam os crimes, os atentados ao pudor, as violências e o excesso de álcool. Cresce o consumo das drogas, que geram os “dependentes”, porque usaram abusivamente sua “independência”.
O corpo humano tem uma dignidade inalienável. Não pode ser profanado pelo exibicionismo desregrado. Aviltar dessa maneira a beleza é atingir o próprio Deus, de onde emana tudo o que temos de positivo, Ele, que é origem de toda beleza. São Paulo nos ensina: “Fugi da fornicação. Todo pecado, que o homem comete, é exterior ao seu corpo; aquele, porém, que se entrega à fornicação, peca contra o próprio corpo”! Ou não sabeis que o vosso corpo é templo do Espírito Santo?” (1Cor 6,18-19). E o Apóstolo é incisivo: “Se alguém destrói o templo de Deus, Deus o destruirá” (1Cor 3,17).
A necessidade da descontração na vida de um povo sofrido como o nosso é indiscutível. Mas essa necessidade deixa de ser satisfeita quando se perde o equilíbrio, a temperança. Há limites. Ultrapassá-los é cair na insensatez coletiva. Não devemos nos esquecer de que há formas nobres, simples e sadias de lazer. Elas irradiam a alegria autêntica que refaz as forças do corpo e aumenta as energias do espírito. Os festejos são positivos e legítimos, quando não abandonamos o bom senso.
Que fazer, então? Refletir, durante esses dias, sobre as conseqüências que poderão advir. Isso nos conduz a uma indispensável moderação, distinguindo, do que há de aceitável, aquilo que encerra em seu bojo condenáveis manifestações de baixos instintos. Afinal, somos seres racionais e não simples animais, destituídos de razão. Isso nos possibilita selecionar o que é saudável, nesse período que antecede a Quaresma e rejeitar o que fere uma consciência cristã. Assim evitamos desgraças irrecuperáveis.
Recordamos o que nos dizia o Beato João Paulo II: “Tenho diante dos olhos a imagem da geração de que fazemos parte: a Igreja compartilha a inquietude de não poucos homens contemporâneos. E, no entanto, há que se preocupar ainda com o declínio de muitos valores fundamentais, que constituem um bem incontestável, não só da moral cristã mas também, simplesmente, da moral humana, da cultura moral” (Encíclica “Dives in Misericordia”).
Por uma submissão generosa, o homem prudente orienta seu procedimento, discernindo o aceitável e repudiando tudo aquilo que contraria frontalmente nossa qualidade de filhos de Deus. Temos que compreender nossa época, inseridos que somos no mundo, mas é preciso coragem para reprovar o que se opõe à dignidade humana, fundamentada no Evangelho de Jesus Cristo. Muitos são severos nos julgamentos, aliás justos, da corrupção pública. Costumam, entretanto, omitir-se nesse outro tipo de devassidão coletiva, igualmente conseqüência de uma sociedade impregnada de critérios materialistas, secularizados.
Dezenas de milhares de católicos que não viajam para a praia ou fazenda participam de retiros espirituais. Eis uma boa opção para passar esses dias que antecedem a Quaresma, uma ocasião para reflexão, silêncio, oração.
O Carnaval constitui para nós, cristãos, um desafio. Deve nos impulsionar a alguma atitude positiva, distinguindo o direito ao lazer dos abusos oriundos dos desvios morais, que tentam obscurecer a nobreza do espírito. Os excessos, em vez de deixarem o ânimo abatido no cristão, estimulam nossa confiança no Salvador, a possibilidade de recuperação, sempre latente no íntimo de nossos irmãos. Condenemos o mal, mas confiemos no poder de Deus.
 Extraído de uma reflexão sobre o Carnaval, do Cardeal D. Eugenio de Araújo Sales, Arcebispo Emérito da Arquidiocese do Rio de Janeiro, realizada em 19/02/2007.
Kátia Maria Bouez Azzi
Consagrada na Comunidade Pantokrator

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